Vocês não sabem, mas não sou totalmente humana. Há muitos anos, no tempo da dor excruciante, eu forjei um braço de aço para me defender do mundo. Esse recurso é muito sutil porque o utilizo com habilidade, alguns diriam até que com sabedoria. Nunca usei a força desses ligamentos de metal para a agressão física, nem pretendo. A minha batalha faz pouco barulho mas algum alarde, pois tudo se dá no campo da estratégia. Eu bato firme, mas concentrado, como quem martela um prego, para que, de prego em prego, construa uma estrutura que me proteja nos tempos da dor, e me mantenho aqui, olhando o mundo por entre as frestas, as mesmas frestas por onde vocês acham que conseguem me ver, e é até possível me vejam um pouco, mas não totalmente. Eu martelei essa estrutura com palavras, tec tec tec nos teclados que detonam ao longo do tempo toda a minha fúria diante desse mundo feio e da minha própria fragilidade, como eu lamento ser tão frágil, tão miserável, tão falha, tão tristonha, tão suscetível, tão esmagável, a mais esmagável das mulheres humanas, e essa condição de barata me desnorteia, então precisei construir esse bunker com o poder do meu braço de aço. Eu sou uma mulher ciborgue.
Braccio di Ferro, Basquiat (1983)
Quando eu saio na rua, vocês podem ver o meu braço implantado, embora não adivinhem do que ele é feito por dentro. Por cima da pele estão as cicatrizes necessárias para o implante dos tendões duros os quais confio a minha força como um amuleto. Vocês pensam: ela tem cicatrizes porque caiu, porque se feriu. É verdade, eu caí e me feri, e isso deixou marcas evidentes dos tempos da dor excruciante na minha pele, então fui inteligente e aproveitei a desculpa da cicatriz para acoplar em mim o braço ciborgue, que mantive em segredo até agora. Com esse braço de aço, sinto que sou invencível, e apenas por sentir que sou invencível, isso me basta. Na maior parte das vezes. Me bastou por muito tempo.Acontece que esse braço se tornou implacável. Os anos de treino em martelar prego e construir armadura o agigantaram tanto que, embora eu ainda me sinta invencível, começo a sentir um cansaço. Se antes as cicatrizes eram a única lembrança do tempo da dor excruciante, souvenir de sobrevivente, agora, a força do braço é uma existência à parte, como um amigo de batalha que não consigo mais evitar, se senta comigo nas horas mais impróprias para listar as nossas vitórias, mas nenhuma vitória pode ser encampada sem deixar um rastro de morte. Agora, quando meu braço invencível se põe a contar nos dedos as vezes que vencemos apesar da fúria do mundo, eu percebo o quanto precisei renunciar de mim em cada luta, pois nenhum soldado vitorioso sobrevive sem precisar matar o antes, ele precisa pisotear o próprio passado de dor e seguir, e essa caminhada de quem não se permite olhar para trás não é outra coisa senão uma fuga? Estou cansada de fugir, ainda mais carregando um braço tão pesado. Procuro uma cabana, um lugar em segurança para finalmente deitar no chão esse companheiro que me defendeu por tanto tempo, mas com quem não consigo mais prosseguir, porque não o reconheço mais como uma parte de mim.
Agora é ele, o braço de aço, quem parece querer me esmagar. Eu, a parte humana, tão esmagável quanto um inseto, cuja pele serviu para cerzir essa enorme cicatriz, que foi crescendo ao longo do tempo como uma cobra. É agora, também, que essa estrutura de metal coloca à prova sua própria invencibilidade, diante da serpente de pele costurada com quem precisa lutar e vencer. Acontece que essa pele costurada nos tempos da dor excruciante também está aqui há muito tempo. Ela também é forte. Ela é mais forte ou mais inteligente que o próprio braço implacável por um detalhe gigante, pequeno furo onde se revela uma eternidade: ela guarda as nossas memórias. Ela tem estratégias mais longevas e sábias. Ela é mais invencível que um tendão de aço porque sabe como sobreviver sem esquecer da própria trajetória. Ela é a minha consciência e ao mesmo tempo algo acima de mim, algo mais poderoso que eu mesma, humana esmagável, e muito mais poderosa que o braço de aço, ela é o que os ancestrais chamam de orí, algo que sou eu, e também maior do que eu, e mais forte que o mundo.
Ela é meu elmo de diamante, meu manto sagrado, meu amuleto de cobra, minha alma ciborgue.